“Mulher é bicho esquisito, todo mês sangra” cantava Rita Lee na música “Cor de Rosa-choque” composta na década de 80. Licenças poéticas a parte, a rainha do rock tinha certa razão, pois embora a menstruação seja evento fisiológico universal no sexo feminino, ainda hoje permanece cercada de mitos e associada ao sofrimento.
Para cerca de 7 milhões de brasileiras afetadas pela endometriose, menstruar é sinônimo de dores intensas, compromissos cancelados e uma vida familiar e social profundamente impactada. A endometriose é uma condição benigna caracterizada pela presença do tecido que reveste o útero (endométrio) fora da cavidade do mesmo e que se manifesta principalmente por dor pélvica e infertilidade.
As causas são muitas e envolvem desde alterações hormonais, inflamatórias, imunológicas, genéticas e ambientais. Não há maneiras eficazes de evitar o seu desenvolvimento.
Outra particularidade da enfermidade é que há três tipos de endometriose: a superficial que se localiza na membrana que reveste internamente a pelve e o abdome, o peritônio; a ovariana que é caracterizada pela presença de cistos de conteúdo espesso e achocolatado, e, por fim, a profunda na qual as lesões de endometriose se fixam mais profundamente no peritônio (mais que 5mm por definição). Os três tipos podem estar presentes em uma mesma mulher que pode apresentar sintomas variados.
Em geral, são sintomas comuns: cólicas menstruais, dor durante as relações sexuais, dor ao urinar ou defecar relacionada ao ciclo menstrual, cansaço, inchaço abdominal, alterações intestinais durante o período menstrual, sangramento menstrual aumentado ou irregular. A dor em cólica durante o período menstrual atinge 15 a 50% das mulheres jovens, e pode ocorrer em associação com outros sintomas como náuseas, vômitos, alterações do hábito intestinal (diarreia ou prisão de ventre), cansaço, tontura, sensação de peso nas pernas, dor de cabeça entre outros. Outras causas de dor pélvica crônica tais como alterações intestinais e musculares também devem ser investigadas nessas mulheres.
A infertilidade é a outra face da endometriose que também é silenciosamente dolorosa e, embora não afete todas as mulheres com endometriose, a doença pode estar presente em até 50% dos casos de infertilidade feminina. A endometriose pode afetar a capacidade reprodutiva de várias maneiras. O processo inflamatório pélvico pode resultar em obstrução tubárea, interferir na ovulação e transporte dos gametas e até na implantação embrionária.
Infelizmente as mulheres com endometriose percorrem um longo caminho desde o início dos sintomas até o diagnóstico definitivo, o que geralmente leva entre 5 e 12 anos. Tal demora se explica pelos sintomas inespecíficos, a necessidade de exames diagnósticos realizados por médicos especializados e um fenômeno denominado “normalização da dor”.
Essa realidade preocupante não é exclusiva do Brasil, como comprovam estudos que revelam que cerca de 61% das mulheres com endometriose ouviram de um médico, inclusive de seus ginecologistas, que não havia nada de errado e que a dor era considerada “normal”. Além disso, muitas delas (47%) consultam cinco ou mais médicos antes de receberem o diagnóstico e/ou tratamento adequados.
O tratamento hormonal está indicado nas mulheres que não desejam engravidar e não apresentam risco de obstrução intestinal ou urinária. Apesar de seguro, não funciona adequadamente ou não é tolerado por até 30% das mulheres. A decisão sobre a realização de tratamento clínico (medicamentoso) ou cirúrgico depende dos sintomas apresentados, assim como do desejo reprodutivo, da idade da paciente e das características das lesões (localização e gravidade da doença).
Para a infertilidade associada à endometriose, há várias opções disponíveis como a fertilização in vitro. A abordagem deve ser individualizada levando-se em conta a idade da mulher e o tempo de infertilidade, além da existência de outros cofatores (infertilidade masculina ou tratamentos anteriores). O tratamento medicamentoso não é indicado nestes casos, pois resulta em suspensão da menstruação e, consequentemente, impossibilita a ocorrência de gravidez.
A endometriose é um problema de saúde pública e as diretrizes atuais recomendam que mulheres com endometriose sejam tratadas por equipes multidisciplinares, que infelizmente não estão disponíveis em todos os lugares.
A jornada de uma mulher com endometriose envolve a peregrinação por consultórios e realização de inúmeros tratamentos, inclusive cirurgias, sem conseguir o alívio da dor ou a tão sonhada gravidez. Infelizmente, para a maioria das mulheres a dor e o sofrimento são inevitáveis. Os tratamentos disponíveis até o momento são paliativos e aliviam os sintomas, mas não curam a doença.
O cerne do tratamento é a individualização e a melhora da qualidade de vida. Assim, acreditar que a dor é real é o primeiro passo. Fornecer cuidados adequados com foco em qualquer aspecto da doença que mais preocupe mulher, abrindo espaço para discussão de dúvidas e medos, já que a doença afeta de maneira única cada mulher são pontos fundamentais na abordagem da doença.
O março amarelo é o mês dedicado à conscientização sobre a endometriose. Educar e falar sobre a doença é vital em vista do enorme potencial da endometriose para impactar o curso de vida das mulheres, visto que o início dos sintomas geralmente ocorre em um período da vida quando várias decisões cruciais precisam ser tomadas. O acesso ao tratamento precoce com que leve em consideração características individuais e objetivos de vida de cada mulher pode aliviar os efeitos negativos da endometriose e permitir a estas mulheres uma vida plena e digna.
Colaboração/Por: Dra. Márcia Mendonça Carneiro